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Um crime de sangue: os impactos da infecção por HIV em pacientes transplantados

Seis episódios no Rio escancaram irregularidades em série e se tornam caso de polícia

Por Lucas Mathias, Paula Felix Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 18 out 2024, 11h32 - Publicado em 18 out 2024, 06h00

Uma nódoa, fruto de atitude irresponsável e criminosa, manchou o reputado e exemplar programa brasileiro de transplantes. Há uma semana, o país entrou em consternação a partir da revelação de que seis pacientes que superaram a espera por um órgão tinham sido infectados pelo vírus da aids depois de passar pelo procedimento no Rio de Janeiro. Desde a confirmação, a contaminação inédita no Sistema Nacional de Transplantes (SNT), reconhecido internacionalmente por seu rigor e abrangência, virou caso de polícia e transbordou em nuances de descuidos motivados por lucro, além da suspeita de conchavos políticos que teriam beneficiado o laboratório PCS Lab Saleme, responsável pelos testes que deveriam proteger os transplantados, simples assim.

O alerta de que algo havia saído de controle brotou em 13 de setembro, quando foi constatada a infecção no primeiro paciente. No último dia 2, houve a segunda comprovação, desencadeando a retestagem das amostras guardadas de 288 doadores do período de dezembro de 2023 a setembro deste ano, durante o qual o laboratório prestou serviços à Secretaria de Estado da Saúde do Rio de Janeiro por meio de licitação. Daí veio a espantosa descoberta de que dois doadores viviam com HIV e o vírus havia chegado a seis pessoas operadas.

SEGURANÇA - Protocolo: triagem e testes são feitos antes da cirurgia em si
SEGURANÇA - Protocolo: triagem e testes são feitos antes da cirurgia em si (Javier Soriano/AFP)

A semana começou com a Operação Verum, deflagrada pela Polícia Civil do Rio, que, até a quinta-feira 17, havia prendido quatro indivíduos ligados ao PCS Lab Saleme: Walter Vieira, sócio e signatário de um dos laudos; Jacqueline Iris Bacellar de Assis, auxiliar administrativa e signatária do segundo laudo; Ivanilson Fernandes dos Santos, responsável pela análise clínica do material que chegava da Central Estadual de Transplantes. Ainda seguia foragido o biólogo Cleber de Oliveira dos Santos, também analista de materiais colhidos — este último preso na quarta-feira 16, ao desembarcar no Aeroporto do Galeão. Detida depois de se entregar na última terça-feira, 15, Jaqueline, contratada para um trabalho de escritório, teria usado o carimbo com registro profissional de outra pessoa para assinar o laudo que liberava o uso do órgão a ser transplantado em uma mulher de 40 anos. Em sua defesa, disse ter formação em análises laboratoriais e negou envolvimento direto no caso.

Associação criminosa, falsidade ideológica, falsificação de documento particular e infração sanitária estão entre os crimes investigados. “Houve uma quebra do controle de qualidade, visando à maximização de lucro e deixando de lado a preservação e a segurança da saúde”, afirmou o delegado André Neves, da Delegacia do Consumidor do Rio, que está à frente do caso. Diante do escândalo, o governador Cláudio Castro (PL) anunciou uma auditoria extraordinária realizada pela Controladoria Geral do Estado (CGE) para inspecionar todos os contratos entre a Fundação Saúde, vinculada à pasta estadual, e o laboratório PCS Lab Saleme, que foi interditado. A previsão é que ela seja concluída em 45 dias. “Estamos trabalhando desde quando soubemos desse erro inadmissível, para atender às vítimas e garantir que isso nunca mais aconteça”, declarou Castro.

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PORTAS FECHADAS - Laboratório PCS Lab Saleme: interditado durante investigação
PORTAS FECHADAS – Laboratório PCS Lab Saleme: interditado durante investigação (Rafael Campos/Polícia Civil/.)

Tão logo a notícia veio à tona, os caminhos que podem ter levado a empresa de análises clínicas a ganhar o processo licitatório também começaram a ser delineados. E esse rastro leva até Luiz Antônio Teixeira Júnior, o Dr. Luizinho, deputado federal desde 2019, com trajetória política ligada à área da saúde. Médico de formação, hoje ele comanda o Progressistas em território fluminense e é líder do PP na Câmara, em Brasília, graças ao bom relacionamento com o líder nacional da sigla, Ciro Nogueira. Atuou de 2013 a 2015 como secretário municipal de Saúde de Nova Iguaçu (RJ), cidade onde fica a sede do PCS Lab Saleme. Em janeiro do ano passado, comandou pela segunda vez a Secretaria de Estado da Saúde na gestão de Castro, cargo que deixou em setembro. Desde o final de 2022, o laboratório recebeu 21,2 milhões de reais dos cofres estaduais. Mas apenas em fevereiro do ano passado a empresa passou a ter vínculo formal com o governo para atender Unidades de Pronto Atendimento (UPAs). Boa parte desse montante, contudo, foi pago com dispensa de licitação. A ligação entre o estado e o laboratório cresceu justamente quando Dr. Luizinho era secretário estadual. Em nota divulgada, o deputado destacou que, embora conheça a empresa, não participou de sua escolha — até porque a contratação ocorreu quando ele já havia deixado a pasta. Walter Vieira, um dos sócios que assinou um dos laudos fraudados, por sua vez, é casado com a tia do deputado. Já Matheus Vieira, levado à delegacia para prestar esclarecimentos, é filho de Walter e, portanto, primo do parlamentar.

O lamentável episódio mina um dos alicerces do sistema de transplantes nacional, a segurança. Tal pilar é perseguido desde o início dos procedimentos no Brasil, na década de 1960, e se aprimorou a partir de então, sobretudo depois que a legislação sobre o tema foi implementada, em 1997. Todo o processo — da captação dos órgãos à cirurgia em si — passa por etapas ágeis e rigorosas. A identificação de potenciais doadores é realizada pelas Organizações de Procura de Órgãos (OPOs) em parceria com as Comissões Intra-hospitalares de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplante, ambas ligadas às Centrais Estaduais de Transplante.

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Embora a fila de espera seja única, há uma organização por estado ou região e monitoramento para que a mesma pessoa não ocupe mais de uma posição. Essa cadeia tem como objetivo permitir que, ao ser constatada a morte encefálica, o protocolo seja disparado para a obtenção e implantação do órgão dentro de prazos máximos que variam de quatro (coração) a 48 horas (rins). “O Brasil tem um sistema de transplante robusto e reconhecido globalmente”, afirma Lígia Pierrotti, coordenadora da Comissão de Infecção em Transplantes da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos. “São mais de 40 000 pessoas que dependem disso para continuar vivendo.” Se incluídas aquelas que aguardam por uma córnea, a fila chega perto de 70 000.

REFERÊNCIA - Mais de 6 000 transplantes em 2023: Brasil é exemplo global
REFERÊNCIA - Mais de 6 000 transplantes em 2023: Brasil é exemplo global (serts/Getty Images)

A corrida contra o relógio é intensa. Porém, não exclui os exames necessários para comprovar que o receptor terá a saúde resguardada. Isso passa obrigatoriamente pela realização de testes capazes de verificar a presença de patógenos como o HIV, os vírus das hepatites B e C e o parasita da doença de Chagas. A infecção pelo agente causador da aids é um fator de exclusão para doação de órgãos no Brasil — há países que permitem que pessoas que vivem com HIV doem para quem também apresenta o vírus. “Todos os laboratórios credenciados fazem esse exame nos doadores para dar segurança à equipe transplantadora e ao receptor”, diz a infectologista Raquel Stucchi, da Câmara Técnica de Infecção em Transplantes do SNT.

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Foi nessa etapa crítica que a negligência cometida no Rio foi escancarada. Ainda que o governo classifique o episódio como caso isolado, especialistas preocupam-se com o impacto da ocorrência. “Cada doador pode ajudar até dez pessoas, mas muitas doações ainda não são efetivadas por recusa da família”, diz Raquel, do SNT. Em 2023, o índice de negativa familiar foi de 42%. Outro ponto sensível é o acolhimento que deve ser dado aos transplantados infectados pelo HIV: eles terão de receber um tratamento para conter o vírus. Felizmente, a terapia não prejudica a ação dos medicamentos utilizados para evitar a rejeição do transplante. A principal medida para evitar que isso se repita é investigar e punir os envolvidos. Trata-se de combater um crime contra a vida.

Publicado em VEJA de 18 de outubro de 2024, edição nº 2915

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