Minha história com a arte vem de longe, mas nunca imaginei que um dia chegaria às paredes de um dos museus mais conhecidos do mundo. Cresci na cidade de Capim Grosso, a mais de 200 quilômetros de Salvador, no sertão baiano. Meu pai trabalhava em olarias, fabricando peças de cerâmica, e, enquanto as outras crianças brincavam de pipa e pião, eu estava sempre no meio do barro, desenhando. Aí o tempo passou, veio a realidade, e comecei a trabalhar como frentista ao completar 18 anos. Voltei ao desenho por uma dessas reviravoltas imprevisíveis: fui atropelado, me machuquei feio e fiquei de repouso em casa. A arte quebrava o tédio. Meus amigos iam me visitar e elogiavam muito as telas. Aquilo me encorajou e comecei a vender uma obra aqui, outra ali. E o que era hobby passou a fazer parte do meu dia a dia. Retornei ao batente no posto de gasolina e pessoas que eu nem conhecia me procuravam para encomendar quadros. Virei o “artista plástico frentista”.
Não foi fácil me ver como artista e, enfim, depois de dez anos, ganhar coragem para pedir demissão do emprego, no posto, para abraçar a carreira. Comprei um carro e, com minha esposa, rodamos o sertão vendendo arte. Não havia nada de romântico na escolha e logo senti o baque de não ter estabilidade financeira. Antes, meu salário não era alto, mas era certo que entraria todo mês. Vez ou outra, o carro quebrava e ainda havia os custos da manutenção. Frequentemente, me expulsavam de espaços públicos, quando tentava fazer uma venda. Sentia aquela dor da humilhação. Um dia, o automóvel pegou fogo, perda total, e tinha de andar de ônibus com as telas debaixo do braço. Minha mulher e meus dois filhos não perderam a confiança no meu talento. Eu perdi: arranjei um trabalho durante o dia, na construção civil, e a arte ficou restrita ao turno da noite.
O reconhecimento só veio mesmo quando decidi divulgar meu trabalho nas redes sociais. Fechava o negócio on-line e enviava as telas pelo correio. Foi na pandemia, surpreendentemente, que a coisa deslanchou. As obras chegaram a esgotar. Estava tão eufórico que organizei uma exposição com outros pintores sertanejos, Raízes do Sertão Nordestino, e visitei várias cidades disseminando nossa arte e a cultura da região, à qual sou tão ligado. Em 2023, recebi uma daquelas notícias que muda tudo. Era um e-mail do Louvre, local que eu tanto admirava, mas não imaginava conhecer nesta vida. Inacreditável: me convidaram para exibir minhas telas em uma galeria de artistas do mundo inteiro. Quando pisei na França, minha trajetória até ali passou na cabeça como um filme — as dificuldades, as humilhações, tudo. Chorei muito.
Ser artista plástico exige muito mais do que se dedicar à pintura. Acabei desenvolvendo um lado empreendedor e, hoje, sei definir o preço de um quadro e valorizá-lo. O Brasil ainda tem dificuldade de entender a arte como um produto. Muitas vezes, querem que a gente faça de graça, como se fosse brincadeira. Encontrei um caminho artístico ao contar a história de um lugar que as pessoas não conhecem tão bem e sobre o qual têm uma ideia caricata — é como se tudo fosse seca, cactos e pobreza no sertão. Até hoje me perguntam por que não pinto cenas de sofrimento. Quero mudar essa visão negativa, ao colocar nas telas o cotidiano, a alegria e as cores tão fortes da região. Depois do Louvre, galerias de Portugal, Espanha e da própria França me chamaram para expor este ano, que promete ser de agenda cheia. Mas sempre voo de volta ao sertão. É lá que mora minha inspiração.
Eduardo Lima em depoimento dado a Duda Monteiro de Barros
Publicado em VEJA de 19 de janeiro de 2024, edição nº 2876