Se a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) fosse eficiente para produzir informações como é para se envolver em histórias bizarras, o governo certamente não passaria por tantos vexames. Eis a última pérola: a Abin tem em seu quadro funcional um espião que foi condenado por abusar sexualmente de crianças. Mais: antes de ele ser contratado, o órgão já tinha conhecimento disso e nada fez. E mais ainda: mesmo cumprindo pena, o espião continua recebendo missões — a última foi a de acompanhar assuntos relacionados a “ações adversas contra interesses nacionais”. E, para completar o enredo, o espião-abusador recebe salário e complementou a renda familiar com o auxílio-reclusão, benefício social pago pelo INSS aos dependentes do presidiário.
A história que resultou nessa situação insólita começou em 2007, quando o paulista Sérgio Gonçalves de Amorim foi aprovado no concurso da Abin, o serviço secreto brasileiro. Pela delicadeza da função, os candidatos só tomam posse depois que é feita uma ampla investigação de sua vida pregressa. O objetivo é identificar se existe algo que possa comprometer a idoneidade moral do agente ou que arranhe de alguma maneira a boa imagem da agência. É uma checagem rigorosa — ou deveria ser. Sabendo disso, Amorim, na época, se antecipou à investigação e informou que era alvo de um processo criminal, acusado de atentado violento ao pudor, crime hoje análogo ao de estupro de vulnerável. As supostas vítimas, duas crianças de 8 anos de idade. O futuro araponga, porém, alegou que a acusação nada mais era que uma invenção da sua ex-noiva, que não concordava com o fim do relacionamento. A Abin aceitou a explicação e admitiu em seu quadro o servidor.
Os rumores sobre o passado do espião, porém, continuaram. Pouco tempo depois da contratação, a agência resolveu apurar melhor o caso. Em 2011, a Abin instaurou uma investigação. Num relatório confidencial, ao qual VEJA teve acesso, agentes destacados para a missão informaram ter encontrado no computador de trabalho de Amorim registros de acesso a sites pornográficos. Era o menor dos problemas. Também descreveram uma diligência que haviam feito no interior de São Paulo, onde corria o processo de abuso. “Da leitura dos depoimentos constantes dos autos ficou a impressão que a situação é muito mais séria do que a relatada pelo servidor e o seu envolvimento na acusação está descrito de maneira bastante convincente”, escreveram os espiões que espionavam o colega. De acordo com o relato das vítimas, Amorim mostrava às meninas cenas de sexo na internet e depois as molestava. Ainda assim, nada foi feito.
Em 2014, a Justiça condenou o servidor a treze anos de prisão. Ele passou a cumprir a pena na penitenciária de Tremembé (SP). Antes, lotado no escritório da Abin em São Paulo, o espião acompanhava a movimentação de migrantes. Da cadeia, ele chegou a propor à agência produzir relatórios sobre o sistema penitenciário brasileiro. O fato é que, durante sete anos, o espião-abusador-presidiário recebeu normalmente seu salário (18 581 reais). A sindicância da Abin só foi concluída em janeiro do ano passado, quando ele foi demitido a bem do serviço público. A história, porém, não estava no fim.
Indignado com a demissão, o espião recorreu à Justiça para ser readmitido, argumentando que a agência sabia do caso antes de contratá-lo — e deu certo. “A existência da ação penal já era de conhecimento da Abin, que não verificou, à época, razões suficientes para obstar a posse e o início do exercício no cargo em questão (…) Um processo penal tendo por objeto um crime muito grave, que coloca em séria dúvida a existência de ‘conduta pessoal irrepreensível’ e de ‘idoneidade moral’, era mais do que suficiente para impedir que o autor, naquela época, tivesse sido nomeado”, escreveu em sua sentença o juiz responsável pelo processo. Em junho passado, Amorim foi recontratado, voltou a receber salário mensal e teve suspenso o auxílio-reclusão (9 290 reais). “A Abin tentou acobertar o caso para que isso não maculasse a imagem da agência”, explica o advogado Fernando Henrique de Almeida, defensor do espião. Recentemente, Amorim deixou a prisão. Autorizado pela Justiça, ele cursa faculdade de direito no período da manhã e se dedica à espionagem no período da tarde.
Publicado em VEJA de 28 de agosto de 2019, edição nº 2649